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Blog Soturno

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A noiva do morto - Parte 1 de 2


O conto a seguir foi inspirado na música “A noiva morto“, da banda Gargula Valzer (de quem ainda pretendo fazer matéria futura) e no conto/capítulo “Solfieri”, parte integrante do romance clássico Noite na Taverna, do autor Álvares de Azevedo.

Designer de capa: ÉRICA FARINAZZO

“Derrama no corpo da donzela esse sangue

Rito imortal da vida daqueles que são eternos”

(Gargula Valzer)

* Os personagens deste conto aparecem num dos contros da autora,

em nossa Antologia Atmosfera Fantasma - Contos de Terror de Autores Nacionais Contemporâneos.


Luana corria… Em aflita fuga, corria. Seguia desviando por algumas aleias para buscar caminho entre as muitas cruzes e estátuas de querubins ao seu redor, quando lembrou de um sonho confuso que havia tido há três dias e simplesmente optado por ignorar… Devia ter dado atenção antes. Mas espantou os pensamentos, pois não tinha tempo para isto.

Encontrou em seu tortuoso caminho, apesar da pouca iluminação, um pequeno mausoléu com uma abertura. Alguns tijolos pareciam faltar. O espaço era suficiente para que seu corpo passasse.

Não pensou duas vezes, se espremeu pela abertura e entrou para se esconder. Uma esperança de escapar.

Ali dentro, de um lado e de outro do único abrigo encontrado, via as gavetas de mármore lacradas, onde os caixões estariam e não conseguia ler as datas de falecimento dos ocupantes, devido à escuridão. Mas imaginava que estariam ali há anos, devido à poeira que sentia tomar o local. Corria o risco de juntar – se a eles em breve…

O coração da garota ainda não sossegava no peito, batia rápido e com força. Desta vez pelo medo, já que tentava recuperar o fôlego perdido na corrida. O espaço ali era pouco e abafado, mas aquela era a única chance que poderia ter para escapar do que o destino lhe reservara… Apesar de ter de admitir que na verdade poderia ter sido uma escolha dela mesma. Não sabia bem quanto tempo aquilo poderia levar… E naquele momento relembrava os últimos minutos que a haviam conduzido àquela situação…

* * *

Minutos antes os dois caminhavam pelo cemitério, local que provavelmente não deveria ser o predileto para um passeio pela maioria das pessoas. Mas para ambos aquele local possuía uma história, e sua essência os chamava para lá de alguma forma.

Ela explicava à ele detalhes sobre os túmulos dos últimos decênios, vinha lhe apresentando constantemente um mundo novo também fora da necrópole, décadas e décadas de evolução e mudanças, que ele perdera porque estivera morto por completo e não pudera acompanhar. Apesar de ela ter nascido somente há duas décadas atrás daqueles decênios enquanto ele dormia.

Não seria problema aprender tudo o que mudara no mundo sozinho, em menos de um mês, talvez uma semana. Mas ele demonstrava interesse em ouvir placidamente ao conhecimento que ela demonstrava ter apesar de sua tenra idade, principalmente perto da dele. Demonstrava saber muitos detalhes daquele que era um cemitério antigo e histórico… Com uma arquitetura clássica que certamente possuía muitas histórias a serem contadas.

Enquanto andavam lado a lado pela necrópole pouco iluminada através da pálida luz do luar, os olhos noturnos dele não sentiam necessidade de mais luz, e os dela já estavam adaptados à parca luminosidade por conhecerem bem o lugar, apesar de serem olhos humanos. Aquele lugar havia se tornado importante na relação que vinha sendo construída entre eles…

O sombrio e pálido acompanhante dirigia à moça morena algumas palavras de modo ameno, e uma ou outra dúvida sobre coisas que ela dizia de vez em quando. Para aquele par aquilo era também um encontro para conversar sobre soturnas amenidades e reforçar o vínculo que já possuíam.

Ele se sentia totalmente a vontade com ela, e ela tinha motivos para sentir segurança com ele. Embora Solfieri não perdesse o jeito um tanto distante e o olhar feroz, que lhe eram características próprias mesmo quando seus olhos não exibiam o brilho avermelhado de seu frenesi.

Contudo ele tratava Luana com gentileza e buscava estar sempre ao seu lado. Gostava da companhia dela, ainda que ela fosse em verdade tão diferente dele. Afinal, eram de espécies distintas, mesmo com tantas afinidades… Ela estava viva e ele… morto.

* * *

Alguns minutos se passaram e repente ela interrompia o que dizia, pois não obtinha resposta. Estranhou. Luana então voltou-se para Solfieri e percebeu que ele estava mais estranho que de costume… Se reclinava com a mão apoiada em um mausoléu próximo, tal qual um humano fazia quando passava mal. Mas ele definitivamente não era humano e não ficava doente… Ou será que ficava?

Vendo-o respirar pesadamente e quase cair ela se aproximou, por impulso e preocupada, pois pela primeira vez algo nele a deixava assustada! Não sabia o que fazer. Deveria abandona-lo à própria sorte? Ela tentava ajudar e segura-lo… Ainda que soubesse certamente não poder sustentar seu peso com a eficiência que ele a sustentaria nos braços como se fosse uma boneca, se assim o quisesse.

Devido à diferença significativa de estatura entre eles, enquanto ela tentava uma posição para segura-lo os longos cabelos ruivos dele pousavam sobre os dela, que eram negros, lisos e com uma grossa mecha branca como o luar. Os dedos mornos e morenos tocavam o sobretudo que cobria a pele pálida e fria na altura da cintura com alguma dificuldade.

Quando Luana finalmente conseguiu que ele erguesse a cabeça e já passava o braço dele por sobre seus ombros, Solfieri a encarou com os olhos mudando de cor bem ali diante dela… Exibiam um vermelho sangue quase flamejante, que ela sabia o que significava. Pela primeira vez, aqueles olhos lhe davam medo de verdade. Como nunca imaginou que dariam.

-Vai…te…embora, Lua! Te escondas… de mim! Vou…matar-te se ficares! Rápido… Corres… Ide… Longe!

Solfieri falava com dificuldade, como se lhe faltasse o ar que seus pulmões já não precisavam, fazendo esforço sobrehumano para refrear sua sede repentina e a gana assassina que ela suscitava. E nem mesmo assim lhe faltava o sotaque que trazia consigo há séculos. Levava a mão ao peito, curvando o corpo e tentando se desvencilhar de Luana.

Ela o soltava e olhava aturdida, e ficou ali parada e confusa, ainda querendo ajudar. Ele parecia sentir dores terríveis, mas não queria ter de matá-la para sana-las. Não queria fazer isto logo a ela, que há pouco tempo o trouxera de volta da morte letárgica, ainda que ele continuasse sendo um “desmorto”…

A humana entendeu o que acontecia, mas não queria acreditar… Saindo de sua breve confusão mental ela logo fugiu, seguindo o conselho dele, correu o máximo que suas pernas podiam… Sabia provavelmente não ser o bastante diante da velocidade dele quando não aguentasse mais se segurar e viesse em seu encalço, porém nada mais tinha à fazer diante da situação… Havia estudado sobre isto quando estudou como evocar Solfieri, mas não quis crer que enfrentaria tal situação ao vivo… Ou deveria dizer “ao morto”?

Porém não adiantava tentar usar de humor negro para tranquilizar seus pensamentos agora enquanto corria pelo cemitério, tentando uma fuga desesperada e sem saber para onde ir… Sabia que os portões da necrópole estavam distantes demais… Buscar um esconderijo na área dos mausoléus antigos seria mais viável.

A respiração já começava a ficar descompassada quando Lua lembrava inclusive já ter lido algo sobre o que agora lhe acontecia em um de seus livros favoritos, que apesar de ficcional bebera certamente das mesmas fontes mitológicas que ela estudara com tanto afinco já por anos…

Portanto sabia que aquilo ocorrido a Solfieri era como uma loucura que assaltava alguns vampiros quando seu coração morto teimava em querer voltar a pulsar, gerando uma dor avassaladora e um frenesi incontrolável… Assim seu próprio corpo reconheceria que ele já estava morto há séculos na primeira batida do coração que há tanto não batia.

Embora Luana não quisera crer num primeiro momento que os sintomas do vampiro eram sinais reais sabia que, segundo as fontes escritas, aquela espécie de criatura da noite tomada por tal sensação ficava selvagem e totalmente irracional e insaciável! Mataria qualquer um que estivesse próximo, não importando quem fosse, uma vez que ele mesmo corria o risco de morrer de vez e sem retorno se sentisse aquilo e nada fizesse…

Sabia portanto que se Solfieri a pegasse estando naquele estado só a soltaria quando estivesse totalmente sem sangue nas veias – morta… A menos que ele optasse morrer para proteger a ela… Mas teria esta opção? Conseguiria vencer os próprios instintos? Com frequência nem humanos acometidos por necessidades que julgam primordiais o conseguem…

Assim não podia ter certeza alguma do que Solfieri faria diante de tal frenesi. Lhe restava apenas se esconder e confiar na força de vontade sobrenatural de seu acompanhante noturno. Qual dos dois pereceria naquela noite seria difícil prever, mas lhe afligia saber que certamente ela ou ele em muito breve estaria de fato nas mãos da morte.

* * *

Então, lhe doía o coração pensar que poderia encontra-lo morto definitivamente quando tudo acabasse. Luana estava indecisa, mas o medo mesclado ao instinto de auto preservação vencia sua preocupação. Arranjaria outro modo de trazê-lo de volta mais uma vez se preciso fosse…

Embora parte dela pensava se deveria se sacrificar para acabar com a dor dele. Entretanto faltava coragem, e ela tentava sequer respirar alto, para não denunciar onde estava, pois imaginava que ele deveria estar vasculhando o cemitério inteiro a sua procura.

Quando a garota finalmente encontrou aquele mausoléu semiaberto já estava perdendo o fôlego. Agora ali naquela escuridão absoluta a ansiedade a tomava sem pedir licença. Aflita puxava o ar para os pulmões, apesar de toda aquela poeira a sua volta. Tentava fazer os olhos se acostumarem, pois ali estava mais escuro do que no resto do cemitério… Olhava em volta forçando os olhos.

Do lado oposto à parede da fenda por onde entrara havia uma porta de ferro, com uma parte formada por um vitral colorido empoeirado, contornado por grades do mesmo ferro que formavam o resto da porta… Pela camada grossa de poeira naqueles vidros, chegando a escurece-los, aquilo era um mausoléu não utilizado por pelo menos uns vinte anos.

Poderia ter uma chance se permanecesse ali até a loucura de Solfieri passar… Contudo Luana então percebeu que seus joelhos ardiam. Teria se arranhado nos tijolos salientes quando se apertara neles para entrar? Rezava para que fosse apenas impressão, pois sabia que uma gota de sangue seu era suficiente para denunciar sua localização. A aflição aumentou…

…e logo o coração parecia sair pela boca quando sentiu que algo encostava na porta de ferro e vidro grosso, pelo lado de fora… Se distanciou e respirou fundo o mais silenciosa possível, se encostando suavemente em uma das gavetas de mármore, tentando ouvir qualquer ruído sem tirar os olhos do vitral… E foi quando escutou passos atrás de si, pelo lado oposto.

Lua virou-se num susto e mordeu o lábio para não gritar… Arregalou os olhos e o coração agora dava solavancos sem que o pudesse controlar… Pois já imaginava que fosse por ouvir nitidamente seus batimentos descontrolados com sua potente audição ou por sentir seu cheiro, Solfieri a havia finalmente encontrado.

Respirou fundo e logo teve certeza ao ver pelo buraco dos tijolos um conhecido par de olhos ferozes e incandescentes, que a encaravam na penumbra, olhando de fora para dentro do mausoléu pela pequena abertura. Ele chegara na parede oposta de modo quase fantasmagórico. Em um segundo a moça via a sombra nos vidros, no outro já via o par de olhos famintos e ardentes do lado oposto.

Ela engoliu em seco quando viu um dos tijolos caindo, e via agora a fenda por onde entrara crescer em segundos, como se os tijolos fossem blocos de brinquedo. Então, com uma velocidade assustadora uma gélida mão agarrava seu braço e a puxava para fora, sem dar-lhe tempo sequer de se encolher… Olhando-a com olhos ainda mais gélidos, apesar de parecerem brasas…

Já fora do mausoléu, após tentar fugir e não conseguir a garota entrou em pânico momentaneamente, e as lágrimas brotaram fartas. Ela tremia inteira tendo o pulso quente ainda seguro com força por aquela mão fria e rígida…

-Por favor… Tente se controlar… Confiei em você! Vai mesmo me matar…?

Aqueles olhos a encararam mais uma vez friamente, e o vampiro muito rapidamente a dominou pela nuca sem escutar sua súplica, tirando da frente seus cabelos e enterrando os dentes em seu pescoço… Na primeira pontada a moça soltou um gemido sofrido.

Tentou se debater e resistir, mas em instantes entendeu que seria melhor relaxar… Fechou os olhos e tentava acalmar o próprio coração. Contudo agora ainda tremia pela aflição, arfava e sentia dor, porém não mais resistia…A jovem tentou respirar profundamente e resolveu entregar-se… Enquanto o vampiro a sorvia com vontade, sem intenção de parar, ela pensava com ar resignado:

“De nada vai adiantar, sei que não vou conseguir me soltar nem fugir… Se me debater ou resistir apenas sentirei dor, relaxar é o melhor… E… Eu sou uma das raras pessoas que já sabia com antecedência como exatamente iria morrer, porque eu mesma escolhi… Sabia bem que me apaixonei pela morte e um dia estaria em suas gélidas mãos por isto! Sabia como tudo isto era irracional, e que este momento chegaria cedo ou tarde, e ainda assim eu escolhi… Não tenho nada do que me lamentar…”

Estava de fato resignada nos braços da morte apesar do fato que a ansiedade crescia, enquanto ela ia perdendo as forças, no que poderiam ser seus últimos momentos de vida. Então na sua mente naquele instante, persistiram em retornar vividas as imagens e os detalhes daquele estranho sonho de dias atrás novamente…

Via candelabros negros e silhuetas mórbidas, em uma caixa de ossos sentia o forte cheiro de incenso de ópio, que curiosamente reconheceu como tal. Então, ainda lembrando-se do sonho, deu-se conta de que nele tudo aquilo estava num local semelhante a uma capela funerária, iluminada apenas pelas muitas velas.

Uma serenata trágica e sombria tocava no ambiente, embora não pudesse saber de onde vinha a música pois o local parecia deserto… Ao se aproximar do altar repentinamente via um corvo sem olhos pousado onde deveria haver uma imagem sacra ou cruz, próximo ao animal reconheceu escaravelhos que passeavam pela face pálida de alguns querubins de mármore, que agora identificava serem muito semelhantes aos das tumbas do cemitério.

Na mesa do altar jazia uma taça de vinho ao lado de um caixão… Quando finalmente se aproximou a passos receosos viu que a figura ali deitada possuía rosas pelo corpo e estava coberta por um véu. Ao estar mais próxima da taça notou que aquilo não era vinho, e sim sangue…

…E quem ocupava aquele caixão, ocultada parcialmente pelo véu e pelas rosas, era ninguém menos que ela mesma! Neste instante Solfieri aparecia, a puxava para si com os olhos em brasas e as presas à mostra, e então o sonho findou quando Luana acordou…

Continua...

Postagem original no blog da autora

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