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A noiva do morto - Parte 2 de 2


O conto a seguir foi inspirado na música “A noiva morto“, da banda Gargula Valzer (de quem ainda pretendo fazer matéria futura) e no conto/capítulo “Solfieri”, parte integrante do romance clássico Noite na Taverna, do autor Álvares de Azevedo.

Designer de capa: ÉRICA FARINAZZO

“Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios.

Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu

e a capela como o noivo despe a noiva.”

(Álvares de Azevedo)

* Os personagens deste conto aparecem num dos contros da autora,

em nossa Antologia Atmosfera Fantasma - Contos de Terror de Autores Nacionais Contemporâneos.

Luana estava de fato resignada nos braços da morte apesar do fato que a ansiedade crescia, enquanto ela ia perdendo as forças, no que poderiam ser seus últimos momentos de vida. Então na sua mente naquele instante, persistiram em retornar vividas as imagens e os detalhes daquele estranho sonho de dias atrás novamente…

Via candelabros negros e silhuetas mórbidas, em uma caixa de ossos sentia o forte cheiro de incenso de ópio, que curiosamente reconheceu como tal. Então, ainda lembrando-se do sonho, deu-se conta de que nele tudo aquilo estava num local semelhante a uma capela funerária, iluminada apenas pelas muitas velas.

Uma serenata trágica e sombria tocava no ambiente, embora não pudesse saber de onde vinha a música pois o local parecia deserto… Ao se aproximar do altar repentinamente via um corvo sem olhos pousado onde deveria haver uma imagem sacra ou cruz, próximo ao animal reconheceu escaravelhos que passeavam pela face pálida de alguns querubins de mármore, que agora identificava serem muito semelhantes aos das tumbas do cemitério.

Na mesa do altar jazia uma taça de vinho ao lado de um caixão… Quando finalmente se aproximou a passos receosos viu que a figura ali deitada possuía rosas pelo corpo e estava coberta por um véu. Ao estar mais próxima da taça notou que aquilo não era vinho, e sim sangue…

…E quem ocupava aquele caixão, ocultada parcialmente pelo véu e pelas rosas, era ninguém menos que ela mesma! Neste instante Solfieri aparecia, a puxava para si com os olhos em brasas e as presas à mostra, e então o sonho findou quando Luana acordou…

Havia preferido pensar que aquele sonho não significasse algo relevante, uma vez que era composto por elementos sombrios tão específicos que talvez fossem pertencentes a alguma das poesias ou músicas góticas que tanto apreciava. Agora sabia que aquilo era um presságio de morte, e sentia-se um pouco ingênua por não querer crer até ser tarde demais.

+++

De volta à realidade, Luana escutava as batidas do próprio coração como se pulsassem em todas suas veias, com as presas de Solfieri ainda fincadas em sua carne. Escutava nitidamente o ruído que ele fazia ao sugar com gosto. Não sabia quantos minutos haviam se passado. Mas parecia não sentir o chão abaixo dos pés… E já não sentia mais tanta dor.

As mãos da moça agarraram o sobretudo do vampiro com força… Tentava puxar ar pelos pulmões… E em instantes quando soltou outro gemido – desta vez sem saber se era apenas de dor ou algo mais – sentiu o braço dele apertar seu corpo pela cintura com força, e seus pés pareciam estar realmente fora do chão.

Agora ela ofegava, percebia que não sabia mais deduzir se aquela sensação era dolorosa, prazerosa, ou ambas… Sentia o corpo desfalecer e um aperto tomava seu peito sem pedir licença… Seguido de uma sensação de alívio, por mais contraditória que ela parecesse.

Sentia os próprios batimentos mais lentos a cada minuto… Não faltaria muito agora… E entre a consciência e a inconsciência imagens e sensações distorcidas invadiram suas memórias… Então era mesmo verdade que no derradeiro último suspiro o que sentia era paz? Sim, sentia uma paz acolhedora agora.

Memórias remotas se volveram na mente daquela jovem moribunda, e ela notou que aquela não era a primeira vez que sentia algo assim… Então, ela puxou o ar com toda a gana, talvez pela última vez, e num volume inaudível para ouvidos humanos, antes do fim ela murmurou com sotaque semelhante ao de seu algoz, palavras advindas de um passado secular…

- Sou tua Micaela… Não me esqueça… Por favor!

Solfieri arregalou os olhos, e então eles já não estavam mais incandescentes. Surpreendera-se com o que ouvia e retirava a boca do pescoço de sua presa. E ao invés de soltar o corpo inerte que segurava no chão, como lhe era de costume ao matar, ficou pensativo por alguns instantes, segurando a moça já desfalecida. O gosto do sangue quente ainda na boca e a sensação inebriante que aquilo trazia…

Sentiu que tudo aquilo era muito familiar… Já a escutara falar assim antes. Agora sabia que não era ao acaso que o odor e sabor daquele sangue o haviam encantado tanto desde o primeiro instante… E o faziam sentir certa nostalgia… Não quisera acreditar em tal possibilidade, preferira pensar que algo assim era estapafúrdio demais para acontecer, mas agora ali estava uma prova.

Olhou para a face de Luana em seus braços, a via nitidamente com sua visão noturna, apesar da penumbra cemiterial. A pele antes morena agora estava quase tão pálida e fria quanto ele mesmo, que agora possuía temporariamente o corpo morno, após beber o fogo líquido que aquela humana trazia nas veias. O pescoço dela portava agora sua marca característica…

Finalmente a loucura pela qual fora acometido havia passado… Em outras circunstâncias seria tão bom sentir o corpo aquecido por aquele líquido sagrado… Sobretudo aquele advindo daquelas veias. Tão fervente, tão doce, tão viciante… O sangue de Lua…

Apaixonara-se perdidamente por aquele sangue desde a primeira vez que ela lhe dera por livre e espontânea vontade. Aquele líquido sagrado continha algo próprio, algo único! Bom, no início pensava querer dela somente isto… Mas com o passar das noites via que não.

Tantas lembranças seculares o invadiam agora… Ele havia escutado as palavras que ela acabara de balbuciar… E uma destas lembranças sobrevinha nítida em sua mente naquele momento… Já havia escutado aquelas palavras antes… Já vivenciara aquela situação… Sim… Lembrou-se…

Ele próprio fora o algoz dela em existência pregressa, nas terras do velho mundo. Quando ela fora fisicamente outra e se chamava Micaela… Mas sua alma era a mesma, hoje chamada Luana… E tal qual seu sangue também possuía propriedades semelhantes, uma vez que jaz nele a parte líquida da alma. Sentiu-se tolo por não tê-la reconhecido ainda. E pensar que ela lhe pedira para não ser esquecida…

Não fora aquela uma morte justa há séculos atrás. Causara desgraça sem tamanho à pobre Micaela na época. E se surpreendera ao se importar com isto pela primeira vez na ocasião quando finalmente a teve sob seu julgo, como nunca se importava com ninguém. E lá ao longe no tempo quando ela percebera que ia morrer, apenas entregara-se…

Entregara-se a ele… Que então passara a sugá-la do modo mais suave que conseguiu, já sabendo que a mataria. Dando-lhe alguma dignidade. Dando-lhe talvez algum… prazer? Exatamente como fizera agora novamente…? E a fizera reviver aquilo. O momento de sua morte em outro século, em outra vida. E repetir as mesmas sensações… Catalisadas por ele mesmo… E dizer novamente as mesmas palavras.

+++

Agora a segurava deitada em ambos os braços. E falava com ela. Enquanto andava lentamente com ela pelo cemitério, desfalecida e inerte. A saia negra e rendada tal qual os cabelos pendiam, enquanto ele contemplava a face feminina aparentemente serena, embora lhe notasse o resquício de lágrimas…

Pensou no óbvio, parou segurou-a pelas costas com apenas um braço e mordeu o próprio pulso, tentando fazer seu sangue imortal verter nos lábios dela… Mas logo concluiu, tal qual a última vez há tanto tempo atrás, que já parecia tarde demais para esta opção. Aqueles lábios estavam totalmente frios e cerrados.

-Tu nunca me temeste! E é por isto que terminaste assim… E pensar que graças a ti consegui voltar a este mundo…

Olhava para ela. Mal acreditava, que justo ele, sempre um assassino compulsivo, como se matar fosse a coisa mais banal e cotidiana do mundo, agora sentia aquela sensação incômoda. Se tivesse um coração vivo e pulsante no peito ele estaria apertado naquele momento. Mas a certeza era que ele não desperdiçaria aquele sangue sagrado com lágrimas.

-Micaela… Ou melhor… Luana… Lua… Que apreendeu a odiar sua própria espécie, antes mesmo de encontrar-me… Que prefere te misturar com demônios… E amar um demônio! Sim, sei que tinhas amor por minha pessoa! Tal como sei que tu mesma procuraste tal destino. Nas duas vezes… Mas eu fui um tolo! Por permitir…

E naquela noite sentira aquilo que o deixava confuso, e desorientado até mesmo em suas falas e pensamentos: Arrependimento. Por tomar de Lua a vida como tomara de Micaela… Quando falhara ao resistir àquele maldito frenesi. Ainda caminhava com a moça desfalecida nos braços enquanto pensava em tudo aquilo. Tentava se comunicar mentalmente com ela, como às vezes fazia… Mas também era em vão.

Haviam enfim saído do cemitério e agora ele a havia colocado deitada num banco de praça que ficava do outro lado da rua, aparentemente deserta naquela hora tardia. Ajoelhou-se diante dela naquela madrugada. Passava de leve a mão fria sobre o rosto da moça inconsciente enquanto a velava.

Sabia que se ela estivesse acordada e de fato em condições de corresponder, jamais cederia ao seu orgulho e estaria demonstrando tudo aquilo. Jamais estaria desabafando do jeito que estava prestes a fazer. Jamais assumiria uma fissura tão quente e profunda em seu frio coração morto…

- Que flagelante maldade fiz contra ti, minha querida! Matei-te uma vez… Quase morreste por causa de minha pessoa uma segunda… E agora novamente! A terceira! Não mereces… Não mereces meu flagelo! Sei que gostas de servir-me de teu sangue, tanto quanto gosto de toma-lo!

Sorriu de leve ao dizer tais palavras, um sorriso triste já com gosto de saudade, depois ficou sério novamente. Os longos fios ruivos alcançavam o pescoço da moça enquanto ele se reclinava sobre ela…

- …Mas não mereces isto, minha Lua! Não mereces a morte! Não mereces que eu tome-te a vida! Não mereces que eu me aproveite de ti! Ainda que me disseste certa vez que para ti morrer seria libertar-se… Não sei se posso concordar…

Os dedos longos e pálidos agora escorregavam pela testa da moça, descendo por seus cabelos, passando pela grossa mecha branca entre a cabeleira negra e sedosa… Colocou carinhosamente alguns fios negros sobre a marca de suas presas deixadas no pescoço dela. Os dedos frios estavam impacientes por não encontrarem naquele corpo nenhuma reação… Nenhum movimento. Nenhum calor. Tanto nas veias quanto na pele antes cor de barro e fervente.

E agora, tão gelada e alva! A face feminina tão fria e pálida, quase quanto sua mão que nela encostava… Era difícil para um demônio como ele admitir, mas já não buscava mais dela somente aquele sangue delicioso, ou conhecimento daquele mundo novo, ou um dia talvez a posse de seu corpo… Realmente temia que ela não acordasse mais. Falava agora em tom suplicante, embora sua voz prosseguisse firme…

- Ô minha querida! Acorde! Abra os olhos, meu doce! Não morreste antes… Por que agora? Não podes morrer assim de novo… Me trouxeste cá, não lembras? E fostes valente para sobreviver naquela noite… Se não estais morta, por que então ficas como se estivesse?

- Podemos fazer alguma coisa? O que aconteceu…?

- Ela está bem?

As vozes repentinas fizeram Solfieri se sobressaltar… Humanos… Dois homens e uma mulher. Vestiam sobretudos como o seu. Eram certamente daqueles que caminhavam pela madrugada, vestiam sempre roupas escuras e maqueavam-se para imitar sua espécie. Lua lhe falava deles. Ela mesma os admirava, e almejava ter amigos como eles. Somente por isto resistiu ao impulso de silencia-los com a morte.

-Esta é minha noiva que jaz desmaiada… – foi tudo o que Solfieri conseguiu dizer sem sequer encara-los…

Aparentava o jeito arisco e os olhos ferozes de sempre, embora não estivessem rubros. Não queria matá-los naquele momento, pois tinha algo bem mais importante para ocupar-se. Contudo se eles se demorassem a seguir seu caminho, o faria.

Embora houvesse aprendido com Luana que aquele tipo de humanos era quem não precisava matar, ainda que deles bebesse. Pois, segundo ela, eles o respeitariam, desejariam, e alguns até idolatrariam, se soubessem o que ele era. E lhe dariam sangue de bom agrado, como a própria Luana fizera várias vezes.

No entanto não queria dar-lhes conversa naquela noite. Todavia mal sabia que o trio havia parado ali por escutarem suas últimas palavras à moça deitada no banco e por notarem a tristeza em seu falar e em seus gestos ao não conseguir reanima-la…

-Sei como é! Mas não esquente tanto a cabeça. Vai passar! Nossa namorada também já ficou muito mal assim uma vez… Com meia garrafa de Contini…

-Eu não sou tão fraca! Foi uma garrafa inteira!

O segundo rapaz do trio apenas olhava para Solfieri, enquanto este não dava atenção alguma ao diálogo. Algo nele lhe dava calafrios na espinha… Um alerta interno lhe dizia que não era muito seguro continuar aquela conversa. E sequer imaginava o quão certa estava aquela intuição. Mais que depressa abriu a mochila, tirou de dentro uma pequena garrafa de plástico, aparentemente nunca aberta, e ofereceu ao estranho homem ajoelhado.

-Isto é água tônica! É ótimo para bebedeiras… Levanta até defunto às vezes! Dê a ela assim que ela conseguir beber…

Solfieri apanhou o frasco esverdeado meio desconfiado, aceitou-o quando ouviu o rapaz dizer que “levantava defunto”… Levara a expressão ao pé da letra. O rapaz então mais que depressa pegou discretamente o companheiro e a companheira pelo braço e buscou tirá-los dali. A moça do trio ainda manteve os olhos fixos no estranho casal antes de se distanciarem, e inocentemente sorriu simpática para o estranho cabeludo despedindo-se.

-Boa sorte! Ela vai melhorar…

O vampiro realmente esperava que a humana desconhecida tivesse razão. Em minutos eles se distanciaram. Logo que estava às sós com sua humana novamente voltou a encara-la. E a conversar com ela novamente, mesmo que ela não lhe pudesse ouvir. Nem saber o quão carinhoso ele podia lhe ser ao se dirigir a ela numa situação como aquela…

-Será que isto lhe devolverá os sentidos, minha Lua? Será que consegues beber…?

Sabia bem que, ao menos para a segunda pergunta, a resposta era não. As esperanças eram falsas, não adiantava mentir para si mesmo. Aquela pele macia e sempre tão quente, de onde vertia o sangue que mais parecia fogo líquido quando lhe tocava os lábios, estava agora mais gélida que a sua. Uma vez que ainda possuía o corpo aquecido por aquele líquido escarlate que lhe era sagrado.

Mas que graças a sua própria maldade e imprudência não poderia mais provar. Sua “noiva” estava morta por suas próprias mãos. Ou melhor, suas presas. Novamente! E antes mesmo de chegar a ser de fato sua noiva, antes mesmo de ousar deixar de lado seu orgulho e dizer a ela o que sentia por sua pessoa. Aquela pessoa que agora era somente um corpo frio e de pele acinzentada em seus braços.

Precisava levá-la dali. Para longe do bulício dos curiosos. Até porque em breve o sol nasceria e o tornariam cinzas se ficasse… Colocou a pequena garrafa que lhe fora ofertada no bolso do sobretudo. Acariciou mais uma vez a face de sua querida noiva morta. Tomou-a nos braços com carinho novamente e usou de velocidade vampírica para cruzar as ruas com ela como uma sombra, sem ser visto por mais ninguém.

“Rosas pelo corpo, coberta de véu, a noiva do morto”

(Gargula Valzer)

“— Que levas aí?

A noite era muito alta, talvez me cressem um ladrão.

— É minha mulher que vai desmaiada.

— Uma mulher! Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso roubador de cadáveres?

O guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte — era fria.”

(Álvares de Azevedo)

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