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O dia em que meus olhos se apagaram

Atualizado: 29 de abr. de 2020

Crônica de Sr. Arcano


Desde quando ainda era um pequeno lobo, ele esbanjava energia correndo pelas montanhas. Nessa época, o brilho de seu olhar era intenso e contagiava a alcateia. Mas um grupo de caçadores (vendedores de ilusões), certo dia, achou o jovem lobo.

Parecia uma vida nova e cheia de promessas. Atrás das grades ele tinha tudo o que antes precisava caçar com esforço nas montanhas, e tinha até mais do que poderia sonhar. Carne fresca, água e um local para descanso, protegido da chuva e do sol. E ao seu lado havia uma loba, que encantou-se com o brilho do olhar do jovem lobo. Mas o tempo foi passando e o tédio tomou conta do animal. Tiraram-lhe os vastos campos por onde ele corria, e não foi só isso. Também tiraram a doce chuva em que ele se refrescava, a lua que admirava, a água corrente do rio onde ele saciava sua sede, e até a neve de seus tempos difíceis de inverno.

Tiraram tudo que ele tinha de mais valor, e que se resume em apenas uma palavra -- liberdade.

O ar da liberdade é mais puro e agradável de se respirar. E o pobre lobo, sem perceber, viu que aos poucos ficava cada vez mais triste.

A loba ao seu lado percebeu que seus olhos tinham perdido o brilho. E sentiu saudades daquele lobo cheio de esperança e vigor que ela um dia conheceu.

Nem mesmo para a lua ele uivava mais, porque a lua vista através das grades não era a mesma vista das montanhas. Era como se ele não pudesse sentir seus raios lunares, e ela parecia cada vez mais longe.

Só o que lhe restava era baixar a cabeça e sonhar...

No zoológico as pessoas passavam dizendo "que vida boa, heim!".

O lobo não conseguia entender essas pessoas. Como ele poderia ter uma boa vida com todo aquele sufoco, era algo sem resposta para sua natureza animal. Preso, sem o ar da liberdade, e ainda queriam que ele fosse feliz...

Então, certa noite, depois de muito tentar entender essa questão existencial, ele respira profundamente e dorme como nunca antes dormiu. Como não podia correr e fugir, o lobo resolveu descansar seus anos de luta em vão tentando recuperar a liberdade perdida de uma forma incomum.

Em seus sonhos ele corre pelas montanhas e uiva para a lua. Com lágrimas nos olhos, ele sente o astro noturno banhar seu corpo peludo e, finalmente, recupera o brilho perdido de seu olhar, desejando nunca mais acordar.

* * *

Acordo desse estranho e revelador sonho percebendo que sonhar é o que nos resta quando nossos olhos se apagam. Cansado demais para aproveitar a noite, lembro-me apenas do pôr-do-sol antes de dormir. A noite inteira um lobo ansiava por liberdade em meu coração, mas a rotina diária de um sistema cheio de regras trancafiava-o dentro de mim.

Nessa noite a lua entrava pela janela. Com uma das mãos erguidas em sua direção eu suplicava "deixe-me sentir seu poder!". Mas a voz não era minha nesse momento em que eu falava dormindo.

Não era minha.


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